O código civil há anos regula o instituto da curatela, surgido lá no direito romano com o fito de proteger aqueles considerados incapazes de gerenciar seus próprios bens ou tomar decisões por si mesmos.
O curador, nome que se assemelha a cuidador, era nomeado para agir em nome de pessoas que não detinham plena capacidade jurídica, como menores de idade, loucos, pródigos, dentre outros. Ao longo dos anos, a curatela evoluiu e se tornou uma medida protetiva adotada em várias legislações, inclusive no Brasil.
Seu principal objetivo sempre foi garantir que os interesses das pessoas incapazes, total ou parcialmente, fossem devidamente resguardados, permitindo que um curador auxiliasse nas decisões e administração dos bens e direitos dessas pessoas.
Ocorre, no entanto, que a curatela sofreu limitações consideráveis e necessárias, após a promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, regulamentada pela Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015.
Isto porque, anteriormente a edição do estatuto qualquer pessoa tida como deficiente estava susceptível a ser curatelado, o que gerava, por diversas vezes uma violação a dignidade da pessoa humana, dentre outros princípios constitucionais.
A curatela está regulamentada pelo artigo 1.767 do Código Civil, estando sujeitos ao regime de curatela: I – Aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; II – (Revogado); III – os ébrios habituais e os viciados em tóxico; IV – (Revogado); e V – Os pródigos.
Somente com a emissão do estatuto da pessoa com deficiência, houve a limitação da curatela para as pessoas com deficiência. De fato, a partir das alterações trazidas pelo art. 3º do Código Civil pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), não existem mais absolutamente incapazes maiores. Com isso a legislação passa a preservar a autonomia da pessoa com deficiência, reconhecendo sua capacidade civil, salvo em casos excepcionais que necessitem de curatela.
Esse avanço traduz a ideia de que a incapacidade jurídica não deve ser automaticamente associada à deficiência, o que permite maior autonomia e proteção aos direitos das pessoas com deficiência.
Logo, a curatela torna-se desnecessária quando a pessoa com deficiência não possui necessidades no âmbito social da vida para tanto. Posição esta que visa prevenir abusos e assegurar o pleno exercício da capacidade legal respeitando os direitos, à vontade e as preferências da pessoa com deficiência intelectual, com base no que dispõe a Convenção sobre Direitos da Pessoa com Deficiência.
Assim, apesar de a pessoa com deficiência não ser mais considerada absolutamente incapaz, poderá ser submetida à curatela, cujo ato afetará apenas os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, não alcançando o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto, conforme preconizam os arts. 84 e 85 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, in verbis:
Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.
§ 1º Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei.
§ 2º É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada.
§ 3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.
§ 4º Os curadores são obrigados a prestar, anualmente, contas de sua administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano.
Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
§ 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
§ 2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado.
§ 3º No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.
Com a alteração trazida pelo estatuto da pessoa com deficiência, nasce a tomada de decisão apoiada, que traduz a garantia ao respeito da vontade dessa pessoa. Este instituto possibilita que pessoa com deficiência contem com o apoio de pessoas de sua confiança para prática de determinados atos da vida civil. A tomada de decisão de difere e muito da curatela. A curatela limita direito, enquanto a tomada de decisão apoiada reforça direito das pessoas com deficiência.
Todavia, ainda existem casos no Brasil, em que a pessoa com deficiência é submetida a curatela com a justificativa de cuidados a vida patrimonial, sem possibilitar que a pessoa realize um termo de acordo de decisão apoiada com alguém da sua confiança, a ver alguns julgados:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA. Ação de interdição. Contextualização da demanda no modelo inclusivo inaugurado pelo Estatuto da Pessoa com deficiência (Lei nº 13.146/15). Depuração do conceito de capacidade civil e dos institutos protetivos correlatos, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, que não mais implica incapacidade civil. Nova perspectiva da curatela, restrita aos atos de conteúdo patrimonial ou negocial. Medida protetiva extraordinária e proporcional às necessidades e circunstâncias de cada caso. Curatelada portadora de Alzheimer. Não indicação de patrimônio a zelar em prol da pessoa com deficiência. Interesse no requerimento de benefício previdenciário. Indícios de ausência de discernimento para outorga de procuração. Curatela necessária à postulação e gestão do benefício, na forma do art. 9º, do Decreto nº 6.214/07. Observância do caráter excepcional do instituto. Limitação da curatela aos ditames do art. 85, da Lei nº 13.146/15. Recurso provido em parte. (0070951-14.2023.8.19.0000 – AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des (a). CARLOS EDUARDO DA ROSA DA FONSECA PASSOS – Julgamento: 11/10/2023 – TERCEIRA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 18a CÂM)
Apelação cível. Ação de interdição. Sentença que decretou a interdição, concedendo a curatela para os atos de natureza patrimonial e negocial, e nomeando como curador o genitor do interditando. Apelo interposto pelo Ministério Público alegando falta de interesse processual diante da ausência de patrimônio. Interditando que não possui bens. Requerente que pretende obter a curatela para recebimento de benefício mensal. Interditando que sofre de esquizofrenia e transtornos mentais. Laudo pericial concluindo pela incapacidade total para gerir os atos da vida civil, considerando que a doença é de curso crônico e irreversível. Pretensão ministerial fundada no art. 110-A da Lei n. 8.213/91, que impede o INSS de exigir termo de curatela para requerimentos de benefícios. Regulamento do Benefício da Prestação Continuada-BPC que prevê como condição a declaração do curador da pessoa com deficiência, incapaz para os atos da vida civil, de que não recebe outros benefícios. Art. 9º, III e parágrafo único do Decreto n. 6.214/2007. Curatela que se mostra imperiosa para possibilitar não apenas o recebimento, como também a gestão da renda mensal a fim de atender as necessidades do curatelado. Manifesto interesse processual. Sentença mantida. Negado provimento ao recurso. (0000807- 42.2018.8.19.0080 – APELAÇÃO. Des (a). CLÁUDIA TELLES DE MENEZES – Julgamento: 27/06/2023 – QUARTA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 5a CÂMARA)
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA. INTERDIÇÃO. DEFERIDA A CURATELA. NOMEADA A FILHA PARA EXERCER O ENCARGO DE CURADORA DA INTERDITANDA. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. LAUDO PERICIAL ELABORADO PELO PERITO DO JUÍZO CONCLUSIVO DA EXISTÊNCIA DE INCAPACIDADE DA APELADA PARA O EXERCÍCIO DOS ATOS DA VIDA CIVIL, INCLUSIVE A IMPOSSIBILIDADE DE OUTORGA DE PROCURAÇÃO. INCAPACIDADE DE DISCERNIMENTO E MANIFESTAÇÃO DA VONTADE PREJUDICADOS. PACIENTE INCAPAZ NA SUA TOTALIDADE DE GERIR SUA VIDA CIVIL E FINANCEIRA, DEVENDO SER REPRESENTADA. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA – LEI Nº 13.146/2015, QUE REVOGOU TODOS OS INCISOS DO ART. 3º, DO CÓDIGO CIVIL, QUE TRATAVA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA – AQUELAS QUE TÊM IMPEDIMENTO DE LONGO PRAZO, DE NATUREZA FÍSICA, MENTAL, INTELECTUAL OU SENSORIAL- QUE NÃO SÃO MAIS CONSIDERADAS CIVILMENTE INCAPAZES, NA MEDIDA EM QUE OS ARTS. 6º E 84, DO MESMO DIPLOMA LEGAL, DEIXAM CLARO QUE A DEFICIÊNCIA NÃO AFETA A PLENA CAPACIDADE CIVIL DA PESSOA, DESAPARECENDO A FIGURA DO ABSOLUTAMENTE INCAPAZ ADULTO E EXIGINDO O PROCEDIMENTO DE CURATELA PARA AQUELES QUE TENHAM PATRIMÔNIO OU NEGÓCIOS, NA FORMA DO ART. 85, DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. EMBORA A REQUERIDA NÃO POSSUA BENS, NÃO HÁ QUE SE FALAR EM AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL DA AUTORA, POIS RESTA EVIDENCIADO QUE A PACIENTE NÃO POSSUI CAPACIDADE DE PRATICAR, POR SI, QUALQUER ATO DA VIDA CIVIL, SENDO BENEFICIÁRIA DE APOSENTADORIA PELO INSS. PARA O RECEBIMENTO DE TAL BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO, NECESSÁRIA A PRESENÇA DE UM TUTOR OU CURADOR. ENTENDIMENTO DO ARTIGO 84, § 1º, DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. CURATELA NECESSÁRIA À POSTULAÇÃO E GESTÃO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. NECESSIDADE DE MANUTENÇÃO DE SUA SAÚDE E SUBSISTÊNCIA. CONHECIMENTO E DESPROVIMENTO DO RECURSO. (0000657-61.2018.8.19.0080 – APELAÇÃO. Des (a). LUIZ HENRIQUE OLIVEIRA MARQUES – Julgamento: 09/03/2023 – DÉCIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL).
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INTERDIÇÃO. DECISÃO QUE DEFERIU O REQUERIMENTO DE CURATELA PROVISÓRIA À GENITORA DO INTERDITANDO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Decisão agravada que concedeu a curatela provisória limitada aos atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, alicerçada na Lei 13.146/15, que institui o estatuto da pessoa com deficiência, estabelecendo no art. 84, § 3º que a definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, sendo certo que o seu artigo 85 restringe a curatela aos atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. Em cognição sumária, a necessidade de representação do interditando no tocante ao benefício de prestação continuada já evidencia o perigo de dano, diante do seu caráter alimentar, e afasta a alegação de impossibilidade de curatela por ausência de patrimônio. Alcance limitado da medida extraordinária que não repercute de forma negativa na plena capacidade civil para os direitos de que trata o artigo 6º do mesmo diploma legal. RECURSO DESPROVIDO. (0021224-23.2022.8.19.0000 – AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des (a). ELISABETE FILIZZOLA ASSUNÇÃO – Julgamento: 17/10/2022 – SEGUNDA CÂMARA CÍVEL).
Portanto, o cenário atual é que muito embora o estatuto da pessoa com deficiência tenha albergado direitos, respeitando a autonomia da pessoa com deficiência, a curatela tem sido ainda um meio muito eficaz para limitações de direitos e controle de pessoas nessa condição. O ideal é que enquanto existe discernimento a pessoa com deficiência, esta possa se valer, tão logo, de um acordo de tomada de decisão apoiada, para resguardar seus interesses e se proteger de uma possível curatela indesejada, devendo o instituto da curatela ser utilizado em caso de extraordinária necessidade.
Se você é uma pessoa com deficiência, e tem algum tipo de limitação sensorial, e corre o risco de perder o discernimento, ainda que de forma provisório, o melhor que se tem a fazer é realizar o TDA (tomada de decisão apoiada), buscando um profissional da sua confiança para isso.
Não esqueça, na curatela você não escolhe quem estará ao seu lado e que irá limitar seus direitos, enquanto na TDA vc quem estará ao seu lado e que respeitará seus direitos.