A recente investigação conduzida pelo Ministério Público do Estado da Bahia envolvendo a construção do empreendimento Alphaville Guarajuba reacendeu debates importantes sobre a legalidade de licenças ambientais concedidas por entes municipais em áreas de proteção especial. Localizado em uma região sensível da zona costeira baiana, o condomínio teve sua licença expedida pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente de Camaçari (SEDUR), levantando sérias suspeitas quanto à competência do município para autorizar intervenções em bioma protegido por normas federais específicas, como a Mata Atlântica.
De acordo com informações veiculadas na imprensa, o empreendimento está sendo investigado por provocar danos ambientais significativos, incluindo a supressão de vegetação nativa, intervenção direta em pelo menos três Áreas de Preservação Permanente (APPs) no entorno da Lagoa de Guarajuba, além da movimentação de solo sem as devidas medidas mitigadoras, bem como o uso irregular de recursos hídricos. O parecer técnico anexado ao procedimento investigatório aponta ainda a ausência de plano de manejo da fauna afetada, além de inconsistências nos estudos apresentados pelos responsáveis pela obra. Tais elementos reforçam a preocupação quanto à regularidade do licenciamento concedido e à própria competência do órgão licenciador.
O caso ganha especial relevância à luz de recente decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida em abril de 2025, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.007. Na ocasião, o STF declarou a inconstitucionalidade de trecho da Lei Estadual da Bahia nº 10.431/2006, que atribuía competência aos municípios para autorizar a supressão de vegetação nativa em áreas da Mata Atlântica e da zona costeira. Por unanimidade, a Corte entendeu que a legislação estadual, ao permitir que municípios deliberassem sobre intervenções em áreas de proteção federal, violava frontalmente o regime constitucional de repartição de competências e reduzia o padrão de proteção ambiental definido pela legislação nacional.
A decisão do STF reafirma o entendimento consolidado de que a proteção de biomas reconhecidos como patrimônio nacional — como é o caso da Mata Atlântica — está sujeita a normas de caráter federal, como a Lei nº 11.428/2006 (Lei da Mata Atlântica), a Lei nº 7.661/1988 (Gerenciamento Costeiro) e a Lei nº 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente). Essas normas estabelecem parâmetros mínimos de proteção que não podem ser flexibilizados por normas estaduais ou municipais, sob pena de afronta ao princípio da vedação ao retrocesso ambiental.
O relator da ação no Supremo, ministro Cristiano Zanin, destacou que a possibilidade de delegação genérica aos municípios para licenciar intervenções em áreas ecologicamente sensíveis comprometeria a efetividade do sistema nacional de proteção ambiental, além de criar um mosaico normativo desigual e potencialmente permissivo. De acordo com a decisão, os municípios só podem exercer competência em matéria de licenciamento ambiental quando os impactos da atividade forem locais e de reduzido porte, o que evidentemente não se aplica a grandes empreendimentos imobiliários em zona costeira, que demandam análise técnica mais complexa e envolvem riscos ambientais relevantes.
No caso de Guarajuba, a atuação da prefeitura de Camaçari ao emitir a licença ambiental sem observância da legislação federal e em aparente descompasso com a recente decisão do STF pode implicar nulidade do ato administrativo, além de eventual responsabilização por omissão ou irregularidade no processo de licenciamento
O episódio serve como exemplo claro das consequências práticas de uma má compreensão do pacto federativo ambiental. A proteção de ecossistemas sensíveis exige não apenas o cumprimento das normas formais, mas também o respeito à lógica de repartição de competências estabelecida pela Constituição Federal. A atuação de cada ente da federação deve ocorrer dentro dos limites legais, com vistas à tutela efetiva do meio ambiente como bem de uso comum do povo.
Conclui-se, portanto, que o licenciamento ambiental em áreas da Mata Atlântica e da zona costeira, salvo hipóteses expressamente autorizadas pela legislação federal e restritas a empreendimentos de pequeno impacto, não pode ser conduzido de forma isolada por municípios. A observância das normas protetivas federais e das decisões do Supremo Tribunal Federal é condição essencial para garantir segurança jurídica, coerência institucional e, sobretudo, a preservação dos ecossistemas que compõem o patrimônio ambiental brasileiro.