STJ CONFIRMA POSSIBILIDADE DE PENHORA DE BEM DE FAMILIA
A penhora de bem de família é um tema de grande relevância no âmbito jurídico e social, suscitando debates acalorados sobre os limites entre a proteção do direito à moradia e a garantia de cumprimento de obrigações financeiras.
No Brasil, a Lei 8.009/90 estabelece a impenhorabilidade do bem de família, visando resguardar o patrimônio essencial para a subsistência e dignidade do núcleo familiar. Contudo, essa impenhorabilidade não é absoluta e comporta exceções, como no caso de dívidas decorrentes de financiamento para aquisição ou construção do imóvel, conforme preceitua o artigo 3º, IV, da referida lei.
Recentemente, uma decisão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) trouxe à tona a discussão sobre a aplicação dessas exceções à penhora de bem de família.
No caso em questão, a consumidora viu-se diante da possibilidade de ter seu único imóvel, onde reside há mais de 18 anos, penhorado para quitar uma dívida referente a um contrato de prestação de serviços para reforma em sua residência. A controvérsia girou em torno da interpretação da legislação pertinente e da extensão do conceito de “construção” para abarcar também reformas realizadas no imóvel.
- DO BEM DE FAMILIA
O bem de família, composto pelo imóvel residencial do casal ou da entidade familiar, é salvaguardado pelo ordenamento jurídico brasileiro através da Lei nº 8.009/90, que estabelece sua impenhorabilidade como regra geral.
Essa proteção visa não apenas resguardar o devedor de suas obrigações financeiras, mas principalmente garantir a estabilidade e dignidade do núcleo familiar. Contudo, é importante notar que essa impenhorabilidade não é absoluta, e sim relativa, uma vez que a própria legislação prevê exceções, como nos casos em que o crédito decorre do financiamento para a construção ou aquisição do imóvel, demandando uma interpretação cautelosa por parte dos tribunais.
Diante da complexidade das exceções à impenhorabilidade do bem de família, especialmente no contexto de créditos oriundos de serviços de reforma residencial, é essencial uma abordagem ponderada por parte dos magistrados.
Embora tais exceções possam restringir a ampla proteção conferida ao imóvel familiar, é imprescindível que sejam interpretadas de forma restritiva, conforme orientação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sem, no entanto, se restringir rigidamente à letra da lei. Essa abordagem visa garantir um equilíbrio entre os direitos do devedor e a satisfação dos créditos dos credores, assegurando, ao mesmo tempo, a dignidade e estabilidade da entidade familiar.
- DECISÃO DO STJ RECONHECENDO A PENHORABILIDADE
Na decisão aqui estampada, o STJ entende, corretamente, que a interpretação da norma que versa sobre a impenhorabilidade do bem de família requer uma análise voltada para a mens legis, ou seja, a intenção do legislador ao promulgar a Lei 8.009/90.
Nesse contexto, é essencial buscar compreender os objetivos almejados pela legislação, os efeitos pretendidos e as situações que ela visa regular. Tal interpretação, denominada teleológica ou finalística, visa sempre direcionar-se para os fins aos quais a norma se destina, conforme ressaltado por Vasconcelos (2015).
De acordo com posicionamento já consolidado pela Terceira Turma, a intenção da norma foi evitar que o devedor se aproveite da impenhorabilidade do bem de família para evitar o pagamento de dívidas contraídas para aquisição ou reforma do próprio imóvel. Ou seja, a impenhorabilidade não pode ser utilizada como escudo para impedir a cobrança de débitos originados de negócios jurídicos relacionados ao próprio bem, conforme destacado no julgamento do REsp n. 1.440.786/SP.
Essa mesma linha de raciocínio encontra respaldo no § 1º do art. 833 do CPC, que estabelece que a impenhorabilidade não se aplica à execução de dívidas relativas ao próprio bem, inclusive aquelas contraídas para sua aquisição. Tal dispositivo reforça a ideia de que a impenhorabilidade do bem de família não pode ser invocada como obstáculo à cobrança de dívidas relacionadas ao próprio imóvel, consonante com a finalidade protetiva da legislação.
O eg. STJ trouxe a ementa da seguinte forma:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DÍVIDA DECORRENTE DE CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE REFORMA RESIDENCIAL. BEM DE FAMÍLIA. PENHORA. POSSIBILIDADE. ART. 3º, II, DA LEI 8.009/90 E ART. 833, § 1º, DO CPC.
1. Recurso especial interposto em 2/9/2022 e concluso ao gabinete em 2/5/2023.
2. O propósito recursal consiste em definir se a exceção à impenhorabilidade do bem de família prevista no art. 3º, II, da Lei nº 8.009/90 se aplica à dívida contraída para reforma do imóvel.
3. As regras que estabelecem hipóteses de impenhorabilidade não são absolutas. O próprio art. 3º da Lei nº 8.009/90 prevê uma série de exceções à impenhorabilidade, entre as quais está a hipótese em que a ação é movida para cobrança de crédito decorrente de financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato (inciso II).
4. Da exegese do comando do art. 3º, II, da Lei nº 8.009/90, fica evidente que a finalidade da norma foi coibir que o devedor se escude na impenhorabilidade do bem de família para obstar a cobrança de dívida contraída para aquisição, construção ou reforma do próprio imóvel, ou seja, de débito derivado de negócio jurídico envolvendo o próprio bem. Portanto, a dívida relativa a serviços de reforma residencial se enquadra na referida exceção.
5. É nítida a preocupação do legislador no sentido de impedir a deturpação do benefício legal, vindo a ser utilizado como artifício para viabilizar a aquisição, melhoramento, uso, gozo e/ou disposição do bem de família sem nenhuma contrapartida, à custa de terceiros.
6. No particular, o débito objeto de cumprimento de sentença foi contraído pela recorrente junto às recorridas com a finalidade de implementação de reforma no imóvel residencial,razão pela qual incide o disposto no art. 3º, II, da Lei nº 8.009/90.
7. Recurso especial conhecido e não provido.(REsp n. 2.082.860/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 6/2/2024, DJe de 27/2/2024.)
Nesse contexto, o STJ já vem tomando como posição a preocupação do legislador no sentido de impedir a deturpação do benefício legal do bem de família, vindo a ser utilizado como artifício para viabilizar a aquisição, melhoramento, uso, gozo e/ou disposição do bem de família sem nenhuma contrapartida, à custa de terceiros.
No ponto de vista dos Ministros, não seria razoável admitir que o devedor celebrasse contrato para reforma do imóvel, com o fim de implementar melhorias em seu bem de família, sem a devida contrapartida ao responsável pela sua implementação.
- DO CASO ESPECIFICO TRATADO NO STJ
No caso em análise, embora o STJ tenha reconhecido que o imóvel penhorado fosse de fato um bem de família, a dívida em questão originada do contrato de prestação de serviços para reforma na residência da recorrente se enquadra na exceção prevista no art. 3º, II, da Lei nº 8.009/90.
Essa exceção está em consonância com a previsão do art. 833, § 1º, do CPC, que trata das dívidas relativas ao próprio bem.
- DA CONCLUSAO
Decisões como essa, que reafirmam a interpretação precisa das leis relacionadas à impenhorabilidade do bem de família, são motivo de celebração para os profissionais da construção civil. Estabelecem um precedente que reforça a importância de contratos bem elaborados e da consultoria jurídica especializada ao realizar reformas ou construções em imóveis residenciais.
A clareza nas cláusulas contratuais e o acompanhamento jurídico adequado garantem não apenas a segurança das partes envolvidas, mas também contribuem para uma justa resolução de eventuais disputas, assegurando o equilíbrio entre os direitos do devedor e a satisfação dos credores.
Em um contexto onde as relações contratuais e os direitos patrimoniais estão em constante interação, a atuação de um jurídico competente se torna essencial para mitigar riscos e resolver conflitos de forma eficaz.
Profissionais da construção civil podem, assim, enxergar nessas decisões judiciais uma valiosa lição sobre a importância de procedimentos adequados e da devida assessoria legal, contribuindo para aprimorar a qualidade das transações comerciais e fortalecer a segurança jurídica no setor.
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