Vamos imaginar que Felipe possuía uma extensa área de terra localizada na zona urbana e decidiu dividi-la em lotes menores para vender individualmente. Contudo, ele não realizou o registro formal da subdivisão no cartório competente nem obteve a aprovação municipal necessária, caracterizando um loteamento irregular.
Maria se interessou por um dos lotes e, apesar de ter sido informada da irregularidade, optou por seguir com a aquisição. O contrato particular de compra e venda assinado entre as partes incluía uma cláusula expressa mencionando a ausência de regularização.
Com o tempo, Maria percebeu os impactos negativos da irregularidade:
- Impossibilidade de obter financiamento bancário utilizando o imóvel como garantia;
- Dificuldade para obter alvará de construção;
- Risco de deficiência em infraestrutura essencial, como abastecimento de água, energia elétrica e sistema de esgoto;
- Inviabilidade de registro definitivo da propriedade.
Diante dessas dificuldades, Maria decidiu entrar com uma ação judicial para anular o contrato e requerer a devolução dos valores pagos, sob o argumento de que a lei proíbe a venda de loteamentos sem o devido registro.
Argumentos e decisão judicial
Em sua defesa, Felipe alegou que Maria estava ciente da irregularidade no momento da compra, e que a nulidade não poderia ser invocada posteriormente, sob pena de caracterizar venire contra factum proprium, ou seja, uma contradição com sua prévia conduta. Argumentou ainda que a liberdade contratual deveria ser respeitada, uma vez que ambas as partes firmaram o contrato de forma consciente e espontânea.
O caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que decidiu pela nulidade do contrato, com base na Lei nº 6.766/1979, que regula loteamentos e desmembramentos de áreas urbanas. A norma visa garantir uma ocupação ordenada do solo, prevenindo prejuízos sociais e ambientais, tais como falta de infraestrutura, impactos ambientais negativos e expansão descontrolada dos centros urbanos.
Fundamentação legal
A Lei nº 6.766/1979 proíbe expressamente a venda ou promessa de venda de lotes não registrados:
Art. 37 – É vedado vender ou prometer vender parcela de loteamento ou desmembramento não registrado.
Embora a lei não determine sanção específica, a proibição implica a nulidade do contrato, conforme o art. 166, VII, do Código Civil:
Art. 166 – É nulo o negócio jurídico quando:
(…)
VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.
Ademais, o objeto do contrato é considerado ilícito, atraindo também a aplicação do art. 166, II, do Código Civil:
Art. 166 – É nulo o negócio jurídico quando:
(…)
II – for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto.
A ilicitude decorre do objetivo da Lei nº 6.766/79, que busca evitar problemas estruturais e ambientais decorrentes de loteamentos clandestinos.
Conclusão
Portanto, mesmo que Maria estivesse ciente da irregularidade ao firmar o contrato, tal fato não impede a anulação do negócio jurídico. Em casos de nulidade absoluta, a ilegalidade prevalece sobre a vontade das partes, garantindo a aplicação da legislação urbanística e a proteção do interesse público.
Assim, a venda de loteamentos irregulares é proibida e, independentemente do conhecimento prévio do comprador, o contrato será considerado nulo, assegurando a restituição dos valores pagos e o retorno das partes ao estado anterior (“status quo ante”).