É oportuno trazer à baila ponto de fundamental importância para o entendimento da atual situação da aposentadoria especial. Observa-se que a LOPS (Lei Orgânica da Assistência Social de 1960), trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de concessão de um novo benefício, denominado “Aposentadoria Especial”.
Regulamentado, inicialmente, pelo Decreto 53.831/64, previu a possibilidade de diversas categorias profissionais que laboravam expostas às condições nocivas de trabalho, a possibilidade de concessão desse benefício.
Assim, vigeu em nosso ordenamento normativo pátrio a conquista aos trabalhadores que laboravam em condições degradantes à saúde, qual seja, a concessão de benefício mais vantajoso, que lhe recompensava com a concessão de aposentadoria mais cedo que os demais trabalhadores, em razão da entrega de saúde ao labor.
Essa entrega de saúde se dava por meio da exposição, em regra habitual e permanente, aos agentes nocivos que se dividem em 3 categorias principais, sendo elas as categorias de riscos físicos, químicos e biológicos.
Em 1991, com a nova legislação previdenciária criada para regular a recém promulgada Constituição Federal de 1988, a Aposentadoria Especial manteve o seu lugar de prestígio dentre osbenefícios previdenciários, apesar de ser o tipo de aposentadoria menos concedido em relação aos demaisbenefícios previsto pela Lei 8.213/91, não superando o patamar dos 10% em relação ao total de aposentadorias concedidas no país.
Ocorre que, apesar de desde 1968 não haver mais qualquer previsão legal quanto à necessidadede idade mínima para a concessão do benefício de
Aposentadoria Especial, tendo em vista a “troca de saúde por benefício” ocorrida para fins de concessão de tal tipo previdenciário, em 2019, estabeleceu-se novamente a necessidade de idade mínima para a concessão do benefício de Aposentadoria Especial.
Assim, após mais de 50 anos sem qualquer necessidade de cumprimento de requisito etário paraa concessão do benefício ora em comento, e sem qualquer regra de transição àqueles que estivessem naiminência de obter a concessão do benefício, exceto pela previsão da regra de pontos, que, novamente, traz a necessidade de idade mínima para a concessão do benefício, restou novamente instituído no ordenamento pátrio a necessidade do cumprimento de idade mínima para fins de concessão do benefício previdenciário de Aposentadoria Especial.
Ou seja, em síntese e em português claro, da “noite para o dia”, o segurado que possuía 24 anos, 11 meses e 29 dias de tempo de contribuição especial e 45 anos de idade no dia 13 de novembro de 2019, que preencheria o direito à concessão do seu benefício no outro dia, passou a ter que contribuir por mais 8 anos, no mínimo, para preencher a regra de pontos que lhe faz jus (86 pontos).
Ora, Excelências, observa-se que tal alteração constitucional findou por ferir o direito de diversos trabalhadores que, por toda a sua vida laboral se expuseram a diversos agentes nocivos para poder realizar a atividade que lhe garantisse o sustento. Essas mudanças da reforma da previdência desconfiguraram a dimensão securitária do instituto da aposentadoria especial.
Dessa forma, discute-se atualmente no STF, a constitucionalidade da referida alteração normativa-constitucional, no bojo da ADI 6.309, onde, em voto, o Ministro Edson Fachin, assevera o seguinte:
[…]
Em casos como esse, que tratam da reforma de toda um programa normativo da
Constituição, o papel do Poder Judiciário deve ser o de assegurar que todas as dimensões desse direito sejam preservadas, ainda que reconfiguradas, e que o Estado não se exima de atender às obrigações que assumiu. Se, de um lado, o Supremo Tribunal Federal reconhece que não há direito adquirido a um regime jurídico, de outro não épossível admitir que riscos protegidos pelo sistema de previdência fiquem simplesmente sem proteção.
No presente caso, não obstante o legítimo interesse do Estado em preservar a viabilidade financeira da previdência social, a sua intervenção acabou por desconfigurar a dimensão securitária do instituto da aposentadoria especial.
O direito fundamental à seguridade social deve ser entendido nostermos do Comentário Geral n. 19 (E/C.12/GC/19): é o direito ao acesso e à manutenção de benefícios sem discriminação como forma de garantir a proteção, entre outros, contra a falta de remuneração relacionada ao trabalho e causada por doença, deficiência, maternidade, acidente de trabalho, desemprego, idade avançada, ou morte de um familiar; contra o acesso à saúde pública; contra a insuficiência de apoio familiar, particularmente para as crianças e para os adultos dependentes.
Ainda de acordo com esse mesmo documento – o qual, como tenho frisado em diversas manifestações, deve ser lido como tendo o mesmo valor que os direitos contidos na própria Constituição –, é obrigação do Estado estabelecer uma idade de aposentação que leve em conta os riscos de trabalhos insalubres e também a capacidade detrabalho das pessoas mais velhas.
O seguro social não visa apenas proteger a pessoa em idade avançada, mas também garantir que ela tenha condições de trabalhar e obter renda. É um grande equívoco confundir os gastos que o Estado tem coma aposentadoria – e que, obviamente, precisarão ser revistos dada a mudança no perfil etário da população – com os gastos necessários para garantir e manter a capacidade produtiva das pessoas. No Brasil, boa parte das medidas de seguro social são feitas pela Previdência Social, o que acaba por ampliar a confusão. Por isso, é preciso ser muito cuidadoso para não se permitir que, em nome das necessidades de uma reforma da previdência, sejam retiradas proteçõesdo seguro social.
Muito embora a Reforma da Previdência tenha mantido o instituto daaposentadoria por
tempo especial, o que, à primeira vista, poderia sugerir um alinhamento com o parâmetro constitucional, os dados trazidos pelo Ministério da Economia exigem que o escrutínio judicial seja feito de forma rigorosa.
É que o fato de as pessoas que conseguiram o benefício terem a mesma expectativa de vida dos demais aposentados não indica, necessariamente, um desvirtuamento do instituto. Ao contrário, podeele muito bem indicar que a política pública foi bem sucedida. O objetivo, afinal, era justamente esse.
Além disso, é preciso observar que no universo de aposentados, o percentual daqueles que obtiveram o regime especial é bastante reduzido, ao menos do que se tem em comparação com alguns países (não chegando a 10% deles, segundo um Estudo feito pela Comissão Europeia, intitulado “Retirement regimes for workers in arduous or hazardous jobs in Europe”).
Por fim, é preciso ter em conta que os prazos de carência para ostrabalhadores em condições insalubres de trabalho podem não ter serventia nenhuma, porque quanto mais exigente for o trabalho, mais cedo as pessoas tendem a se aposentar, comprometendo a sua renda no futuro (Stengard, J. Et al. The Implication of Physically Demanding and Hazardous Work on Retirement Timing. International Journal of Environmental Resarch and Public Health. 2022 Jul.). Para aumentar ainda mais o problema, são justamente os trabalhadores com os menores salários que tendem a se aposentar antes (Lopez, Italo Garcia, Kathleen J. Mullen, and Jeffrey Wenger. 2022. “The Role of Physical, Cognitive and Interpersonal Occupational Requirements and Working Conditions on Disability and Retirement.” Ann Arbor, MI. University of Michigan Retirement and Disability Research Center(MRDRC) Working Paper; MRDRC WP 2022- 448).
Esses dados indicam que a aposentadoria por tempo especial tem funçãodúplice: ela serve para proteger as pessoas em idade avançada, mas ela serve também para proteger a capacidade laboral de quem já não mais consegue trabalhar, apesar de não ter deficiência.
Por isso, sempre que o Estado instituir ou aumentar a idade para o acesso à aposentadoria especial, deve ele assegurar que as pessoas que estão em profissões com risco à saúde possam de fato e comdignidade trabalhar por mais tempo, ou se isso não
for possível, que eles possam ter uma renda assegurada. A ideia é que o Estado promova políticas sociais que permitam a recolocação desses trabalhadores. Essa conclusão, que decorre da própria dogmática dodireito à seguridade social foi também a que chegou a Comissão Europeia no White Paper on Pensions de 2012.
Noutras palavras, se não é possível falar que a simples instituição de uma idade mínima para a aposentadoria especial, por si só, violao direito à seguridade social, haverá ofensa à Constituição (e ao núcleo essencial desse direito fundamental) sempre que a instituição de idade estiver dissociada de medidas que promovam a extensão com dignidade da capacidade laboral.
Lamentavelmente foi o que aconteceu neste caso.
Para além da instituição da idade mínima, a Reforma da Previdência vedou a contagem diferenciada de tempo de contribuição. Se é certo, como já tive oportunidade de assinalar no julgamento do RE 1.014.286,que a partir da Emenda há uma faculdade para os demais entes da federação instituírem, em seus regimes próprios, critérios para a contagem diferenciada, ela passa a ser necessária quando há uma idade mínima para a concessão da aposentadoria.
É que a exposição a agentes nocivos diminui consideravelmente a capacidade laboral. Segundo o estudo recente “The Role of Physical, Cognitive, and Interpersonal Occupational Requirements and Working Conditions on Disability and Retirement”, já indicado neste voto, há um efeito cumulativo das tarefas mais exigentes na saúde do trabalhador.
Além disso, se o objetivo – correto – da Reforma é estender o período laboral, a vedação da conversão do tempo especial em comum desincentiva os trabalhadores expostos a condições mais graves abuscarem uma alternativa mais salubre. Como já se indicou nesta manifestação, é preciso dar meios para que os trabalhadores que estão nessas condições busquem alternativas de renda sem desconsiderar os efeitos cumulativos do período especial.
Da mesma forma, o cálculo do benefício da aposentadoria especial, sobretudo se considerada a proibição da conversão do tempo especial em comum, além de desincentivar a opção pelos trabalhadores deocupações que sejam menos arriscadas, põe em condições iguais quem está em posições
jurídicas diferentes. Note-se que o trabalhador em condiçõesespeciais de 20 ou
25 anos de contribuição, apesar de estar em condições prejudiciais à saúde, terá que trabalhar pelo mesmo período que os demais trabalhadores para ter a mesma renda.
Como apontam as pesquisas sobre as condições laborais, é evidente que esse trabalhador não conseguirá permanecer por todo esse tempo nomercado de trabalho. Irá aposentar- se mais cedo, com renda menor,comprometendo seu futuro.
Com todas as vênias ao e. Ministro Relator, não vejo como essa alteração possa ser compatível com o direito à igualdade e à seguridade social.
Sem prejuízo de voltar a apreciar este tema, quando da devolução dopedido de vista feito pelo e. Min. Ricardo Lewandowski, e almejando que essas considerações possam modestamente contribuir para o votoque Sua Excelência trará, divirjo do e. Ministro Relator, para julgar procedente a presente ação direta, declarando a inconstitucionalidade do inciso I do art. 19; do §2º do art. 25; e do inciso IV do § 2º do artigo 26, todos da Emenda Constitucional n.º 103, de 12 de novembro de 2019.
É como voto.
Assim, tendo em vista tudo o exposto, entendemos que a alteração trazida pela emendaconstitucional em relação a atribuição de idade mínima para a concessão do benefício de aposentadoria especial, sem qualquer regra transitória, não coaduna com os princípios fundamentais da seguridade social e que, portanto, devem ser entendidos enquanto inconstitucionais.
Caso você se encontre em uma situação de iminência de preenchimento de tempo de contribuição especial, entretanto, ainda não tenha cumprido o requisito etário para a concessão desse benefício, entre em contato com o seu advogado previdenciarista e discuta a possibilidade de concessão desse benefício.
João Victor Macêdo Trindade. Advogado OAB/SE 16.875. Pós-Graduando em Direito e Prática Previdenciária na Faculdade de Direito 8 de Julho. Mestrando em Direitos Humanos na Universidade Tiradentes.