O cuidado possui uma natureza dual: é, ao mesmo tempo, um direito – reconhecido, inclusive, como direito humano na Conferência Regional sobre a Mulher na América Latina e Caribe (ONU Mulheres; CEPAL, 2021) – e também um dever socialmente atribuído, majoritariamente, às mulheres. Essa assimetria histórica tem impulsionado debates que extrapolam a dimensão individual e alcançam o campo jurídico, político e social, especialmente no âmbito do Direito das Famílias.
A chamada economia do cuidado insere-se nesse contexto como uma temática emergente e urgente, ainda que os fatos que a compõem não sejam novos. O que se altera é a percepção social e jurídica que passa a reconhecer o trabalho doméstico e de cuidado como parte essencial da dinâmica econômica e social. O Direito, como fenômeno cíclico, precisa se adaptar a essas transformações e oferecer respostas que reflitam a justiça material, a igualdade e a dignidade da pessoa humana.
Historicamente invisibilizado, o trabalho doméstico realizado dentro do lar, majoritariamente pelas mulheres, tem sido objeto de crescente valorização. Embora não remunerado, esse trabalho sustenta a vida cotidiana e garante o bem-estar físico, emocional e psicológico de crianças, idosos, doentes e demais membros da família. De acordo com relatório da OIT (2018), a maior parte desse cuidado é prestado por mulheres e meninas, em termos de tempo e volume, sem o devido reconhecimento econômico e jurídico.
A sobreposição entre cuidado e desigualdade de gênero também tem sido objeto de atenção da literatura feminista, conforme destaca Adriana Piscitelli (2008), ao evidenciar como a diferença sexual foi historicamente convertida em desigualdade estruturada. Atribui-se à mulher o domínio do espaço privado, a passividade e a afetividade; ao homem, o espaço público, a racionalidade e a provisão econômica. Trata-se de um sistema que sustenta hierarquias, reforça estereótipos e perpetua a divisão sexual do trabalho (MacKinnon, 2011).
Nesse cenário, mesmo quando há livre escolha, é necessário reconhecer as limitações estruturais dessa “escolha”. Imaginemos, por exemplo, uma mulher que, em comum acordo com seu marido, decide não terceirizar o cuidado doméstico e abdica da vida profissional para se dedicar exclusivamente às tarefas do lar: cozinhar, limpar, cuidar dos filhos, gerenciar a casa. Após 20 anos de casamento, o marido decide sair de casa e romper o vínculo conjugal, sem justificativa.
O resultado, frequentemente, é um desequilíbrio brutal: o marido, ao longo desses anos, contribuiu para a previdência e construiu patrimônio; a mulher, por sua vez, pode se ver privada de aposentadoria – caso não tenha contribuído – e, a depender do regime de bens, até mesmo da meação sobre o que foi adquirido com os frutos do trabalho do marido. Se o casamento se deu sob o regime de separação convencional de bens, o trabalho de cuidado – que permitiu, inclusive, que o cônjuge se dedicasse ao mercado – torna-se juridicamente irrelevante.
É justamente para enfrentar essas situações de injustiça que cresce o reconhecimento do valor jurídico do trabalho de cuidado. O cuidado, afinal, está presente em todas as fases da vida humana: idosos precisam de assistência, crianças necessitam de proteção e educação, pessoas doentes exigem atenção e suporte. Essa função, desempenhada rotineiramente pelas mulheres, sustenta não só a estrutura familiar, mas a organização econômica e social como um todo.
Dessa forma, o Direito das Famílias tem sido instado a revisitar seus próprios paradigmas e reconhecer a contribuição desproporcional das mulheres nesse campo. A ausência de divisão igualitária das responsabilidades parentais gera sobrecarga que limita oportunidades profissionais, acadêmicas e sociais das mulheres.
Nesse sentido, decisões judiciais começam a reconhecer esses desequilíbrios. A 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, por exemplo, reconheceu a sobrecarga da mãe responsável pelo cuidado cotidiano dos filhos como fator relevante na fixação dos alimentos, valorizando o tempo, esforço e dedicação invisibilizados pelo sistema jurídico tradicional (TJPR, Ap. Cív. 0013506-22.2023.8.16.0000).
Adicionalmente, autores como Carlos Elias de Oliveira (2024) defendem a fixação de pensão compensatória à parte que, em razão do regime de guarda, dedica-se ao cuidado integral dos filhos, acumulando funções que impedem a inserção ou continuidade no mercado de trabalho. Tal pensão seria distinta da pensão alimentícia e teria caráter compensatório pela dedicação ao trabalho não remunerado.
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, lançado pelo CNJ em 2021, reforça essa abordagem. O documento orienta magistrados a julgarem com sensibilidade às desigualdades históricas, respeitando tratados internacionais como a CEDAW, a Convenção de Belém do Pará e a Declaração de Pequim. O objetivo é evitar que o Poder Judiciário perpetue estereótipos ou decisões que reforcem a desigualdade de gênero, promovendo julgamentos alinhados ao princípio da igualdade substancial.
A Constituição Federal de 1988 já fornece os alicerces para esse novo olhar, ao assegurar, nos artigos 5º e 226, a igualdade entre homens e mulheres e a corresponsabilidade nas relações familiares. Contudo, como advertem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2022), é preciso que os operadores do direito promovam a concretização da igualdade no caso concreto, evitando que formalismos revoguem, por via oblíqua, as conquistas da Constituição Cidadã.
Por fim, é essencial que o sistema jurídico deixe de considerar a jurisdição como um espaço neutro, ignorando os eixos estruturais de opressão. Valorizar o trabalho de cuidado e reconhecer sua função social e econômica é um passo necessário na direção de uma sociedade mais justa, onde as mulheres não paguem com a própria liberdade e autonomia pelo cuidado que garantiu o bem-estar de toda a família.